terça-feira, 8 de junho de 2010

"não sei ana se já te falei da chuva. se já te disse das flores, de ser primavera lá fora. se te contei de quando me cortei no tórax com uma tesoura - queria tirar-me do peito o coração-, de como no lugar da ferida me cresceram algas. tempos houve em que cortava o corpo, procurava em todas as feridas um pedaço de coração a abater. doía-me tão forte dentro, ana, doía-me tão forte e tão fundo dentro da pele. não sei ana se já te falei de amor, de voltar os olhos para o mundo e ver crescer-lhe flores dentro, é destas flores que te devia ter falado. de como estas flores te enchem subitamente de vida. e o amor também dói, sobretudo quando está longe e o corpo o chama para perto e ele não ouve, é que o amor às vezes não tem ouvidos ana. trouxe-te hoje um segredo, quero dizer-to quando o sol chegar mas hoje não há sol. estou terrivelmente só, ana, trago dentro de mim todas as histórias, marcas de facas e tesouras na pele, memórias que arrastam memórias, de sangue, de dor. de ter morrido já. ainda não te contei de como morri, era dezembro, engoli uma caixa de anti-depressivos, lembro-me de ter escrito um pequeno testamento, deixava-te os meus livros ana, a ti que nunca conheci, deixava-te os meus livros. o hospital é um lugar frio quando se acorda da morte. eu tinha frio e não havia nenhum corpo ali ao lado, que me aquecesse, que me abraçasse, nenhum corpo, ana, nenhum. morri e nasci sozinha. e digo-te ana ninguém deve morrer só. não há nada mais triste do que morrer só. não sei hoje ana se já te falei da chuva. "

MARGARETE SILVA

sempre ouvi dizer que o amor tem reticencias lá para o seu meio,talvez na palavra M ou então na palavra Ó,porque de ti tudo vem intenso e se agita no ar,neste ar que se precisa para respirar,outros chamam-lhe oxigénio.também sei que quando assim me falas fazes-o com um buraco no lado esquerdo do peito,com um pássaro que saltou do ninho e voou.
querida,
havemos de ter a felicidade a roer-nos os dedos e libertar sorrisos nos desejos.havemos de erguer a taça da loucura racional das palavras e adulteremos a lua em nosso favor.ninguém tem que morrer só.e no final dos nossos dias de impulsos,extravagancias imaginárias, deitaremos o corpo ao mar para que este leve todas as melancolias e que nos traga de novo o acordar ingénuo das crianças melífluas.

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